Folha de S.Paulo: “UBS de São Paulo cria grupo de desmame para ajudar idosos a parar de tomar remédios para ansiedade”

Em meio à correria da vida moderna e à tendência crescente de resolver problemas com um simples comprimido, surge uma

Hilda Gomes Falcão, 88, faz parte de grupo de desmame de medicamentos na UBS Jardim Lourdes – Karime Xavier/Folhapress

Em meio à correria da vida moderna e à tendência crescente de resolver problemas com um simples comprimido, surge uma iniciativa no mínimo inusitada: um grupo de desmame para idosos dependentes de benzodiazepínicos. Sim, aqueles remédios para ansiedade que, quando tomados por tempo demais, acabam criando um ciclo vicioso difícil de romper. Na UBS Jardim Lourdes, no Jabaquara, profissionais da saúde decidiram desafiar a cultura da supermedicalização e oferecer uma alternativa mais humana e menos química para a velhice.

O cenário não é novidade. Desde a década de 1960, os benzodiazepínicos, como o famoso clonazepam, dominaram os consultórios psiquiátricos. Vendidos como a solução definitiva para insônia, ansiedade e estresse, esses fármacos rapidamente se tornaram os melhores amigos de milhões de brasileiros. No entanto, a linha entre o benefício e a dependência é tênue, e muitos pacientes, especialmente os idosos, descobriram isso da pior forma possível. Com o tempo, o efeito tranquilizante se torna cada vez menor, a dose precisa ser aumentada e, de repente, o que era uma solução vira um problema.

O grupo de desmame da UBS Jardim Lourdes nasceu dessa constatação. A equipe médica percebeu que muitos idosos tomavam ansiolíticos há décadas sem saber exatamente por quê. Pior ainda: atribuíram sintomas adversos, como tontura e sonolência extrema, ao próprio envelhecimento, sem suspeitar que o verdadeiro culpado estava no frasco de comprimidos ao lado da cama. Diante desse quadro, surgiu a ideia de uma abordagem diferente: tirar o remédio de cena aos poucos, com suporte psicológico e terapias alternativas para minimizar os efeitos da abstinência.

O processo não é simples. O desmame exige paciência, acompanhamento contínuo e, acima de tudo, um esforço genuíno para substituir a pílula por algo que realmente funcione no longo prazo. Entre as ferramentas utilizadas, destacam-se a acupuntura, os fitoterápicos e, talvez o mais subestimado de todos, o convívio social. Afinal, a solidão pode ser um veneno tão forte quanto qualquer substância química.

Histórias como a de Hilda Gomes, 88 anos, mostram o impacto do projeto. Depois de 20 anos tomando clonazepam, ela viu o efeito sedativo se transformar em tonturas constantes e quedas preocupantes. A solução encontrada? Redução gradual da dose, substituição por fitoterápicos e visitas domiciliares de agentes de saúde. O resultado? Menos sonolência, mais equilíbrio e um novo olhar sobre sua própria saúde. O mesmo vale para Benito dos Santos, 68 anos, que começou a tomar ansiolíticos ainda na juventude e, décadas depois, percebeu que estava preso a um ciclo de dependência. Com a ajuda do grupo, ele conseguiu reduzir a frequência dos comprimidos e encontrou na acupuntura uma nova forma de aliviar o estresse.

Os números corroboram a necessidade dessa abordagem. Segundo uma pesquisa da Unifesp, financiada pelo Ministério da Justiça, 14,7% dos brasileiros adultos já usaram benzodiazepínicos pelo menos uma vez na vida. Um crescimento considerável em relação a 2012, quando o número era de 10,5%. Esses medicamentos, que incluem diazepam, alprazolam e bromazepam, continuam sendo amplamente prescritos, muitas vezes sem a orientação adequada sobre seus riscos a longo prazo.

O psiquiatra Paulo Amarante, da Fiocruz, chama atenção para a cultura da “pílula mágica“. Para ele, a sociedade normalizou o uso de medicamentos para tratar qualquer desconforto emocional, sem investir em soluções mais abrangentes. A questão, segundo Amarante, não é abolir os benzodiazepínicos, mas sim usá-los com parcimônia e, sempre que possível, como uma ferramenta temporária, não como um passaporte vitalício para a tranquilidade artificial.

Outro caso emblemático é o de Angélica dos Santos, 68 anos, que sofreu um infarto e, desde então, desenvolveu um medo irracional de dormir. O resultado? Um combo de antidepressivos, soníferos e benzodiazepínicos, que a deixava cada vez mais confusa e irritada. Com o desmame, ela finalmente recebeu um acompanhamento psiquiátrico adequado e descobriu que sua insônia era menos sobre química e mais sobre o trauma do infarto. Hoje, ela se sente melhor e, nas palavras dela, “lembra dos sonhos“, algo que antes era impossível.

O trabalho do grupo de desmame não se limita à retirada da medicação. Há uma preocupação genuína em educar os pacientes, ensinando-os sobre as condições que enfrentam e oferecendo alternativas viáveis. Como destaca a psicóloga Greicy Duarte, “sentir é um processo humano, natural e necessário“. O problema não está nas emoções desconfortáveis, mas na forma como a sociedade as enxerga. Nem tudo precisa ser resolvido com um comprimido.

Iniciativas como essa trazem um novo olhar para a saúde mental dos idosos. O envelhecimento já é, por si só, um desafio. A fragilidade física, as perdas e as mudanças na rotina tornam essa fase da vida particularmente difícil. Mas, ao invés de entorpecer essas experiências com remédios, o grupo da UBS Jardim Lourdes propõe algo diferente: enfrentar as dificuldades de maneira mais equilibrada, com suporte emocional e social.

Em um mundo onde a medicina se tornou refém da farmacêutica, é um alívio ver um projeto que prioriza as pessoas em vez dos protocolos. Se essa iniciativa servirá de modelo para outras unidades de saúde, ainda não se sabe. Mas uma coisa é certa: para os idosos que participam do grupo, a vida sem benzodiazepínicos tem sido mais leve, mais lúcida e, acima de tudo, mais humana.

Com informações Folha de S.Paulo

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